10 de out. de 2017

Crítica à ideologia da “escola sem partido”

                Compõem a cena política brasileira, pelo menos desde meados de 2013, muitos aspectos por demais importantes para que possam ser deixados de lado, não só porque estão conectados, articulados, mas igualmente em razão de seu significado a médio e longo prazos. Este texto aborda um deles, o movimento “escola sem partido” (deste ponto em diante designado pela sigla ESP).
                No site do ESP, no campo “Objetivos”, encontramos isto como o núcleo de sua proposta, resumida em 3 objetivos principais:
EscolasemPartido.org foi criado para dar visibilidade a um problema gravíssimo que atinge a imensa maioria das escolas e universidades brasileiras: a instrumentalização do ensino para fins políticos, ideológicos e partidários (...). Lutamos: pela descontaminação e desmonopolização política e ideológica das escolas  (...); pelo respeito à integridade intelectual e moral dos estudantes (...); pelo respeito ao direito dos pais de dar aos seus filhos a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções (...).[1]
Evidentemente, o ESP está se referindo, muito mais do que a legendas partidárias, a um conjunto de temas, concepções, visões de mundo, categorias analíticas, isto é, a ideologias que ele, ESP, caracteriza como contaminação e monopolização moral, política e “ideológica” (sentido pejorativo). Convenhamos, esta é a essência do pensamento fascista.
Mussolini, no auge do fascismo italiano, afirmava nos comícios em que era o grande chefe que “os partidos dividem a nação”.
Sócrates, na Grécia Antiga, tinha sobre seus ombros a acusação de “perverter a juventude”.
Jesus de Nazaré respondeu à acusação de “subverter o povo”, dado que se sentava à mesa com publicanos, conversava com samaritanas, prostitutas, entre outras figuras tidas e havidas pelos líderes políticos e religiosos de seu tempo e lugar como a escória a ser eliminada, pois contaminariam a sociedade de então.
Nos tempos da ditadura militar no Brasil (1964-1985), o regime político buscava garantir uma suposta “neutralidade” pedagógica nas escolas, lançando mão de conteúdos como Educação Moral e Cívica, Organização Social e Política e Estudos de Problemas Brasileiros, respectivamente para os níveis de ensino então denominados 2º ciclo do Primeiro Grau, Segundo Grau e Ensino Superior. Uma única perspectiva era apresentada como verdade única e inquestionável, naturalizando-se, assim, a construção do discurso oficial, ou, dito de outra forma, à la E.P.Thompson, promovendo um enquadramento da memória, dado que nada que estivesse fora do discurso oficial poderia ser considerado científico ou válido.
Assim é o ESP. Seus adeptos querem apenas Ludwig Von Mises, nada de Karl Marx. Eles pretendem expurgar das escolas temas como gênero, diversidade de orientação sexual porque sustentam que o masculino e o feminino são estabelecidos – desculpe-me o leitor pela expressão chula, mas a capacidade de síntese de Marcos Feliciano, para o caso presente, é didática do que representa o ESP – “pelo que cada um traz entre as pernas”[2]. Sua intenção contempla estabelecer a heterossexualidade como “normal” e a homossexualidade como “anormal” e imoral, tendo como corolário um modelo único de família, de pátria, de nação, de certo, de errado etc.
Isto posto, passo à síntese da análise sobre o significado do movimento ESP.
O título acima revela, em larga medida, meu posicionamento sobre tal movimento. Ele mesmo é uma concepção de mundo, uma visão, enfim, uma ideologia em sentido amplo, por mais que esta caracterização contrarie a autodeclaração do movimento. Por outro lado, é também uma ideologia em sentido estrito (no caso, como universalização de uma forma particular de ver as coisas). Senão, vejamos.
1.       O ESP é um movimento que visa eliminar da vida escolar toda e qualquer concepção articulada com as lutas pela emancipação humana, da superação das desigualdades socioeconômicas àquelas que buscam enfrentar as hierarquias entre os gêneros, as manifestações de LGBTfobia e todas as formas de exploração, intolerância e opressão. O ESP não chega a denominar quais “partidos” seriam o alvo de sua atuação, mas é evidente que seus objetivos são o da supressão de todo um campo político e ideológico, o da esquerda e centro-esquerda.
2.       O ESP é ele mesmo um partido político, no sentido gramsciano, isto é um movimento de ideias, que busca racionalizar a vida social, sendo, inclusive, uma ideologia integral (Gramsci), pois visa se impor como pensamento único, como verdade absoluta, naturalizando relações históricas e sociais, como se elas não tivessem historicidade, interesses e lastro em classes, frações de classe e segmentos políticos no interior destas. Portanto, o ESP, sob certos disfarces, é o processo de pavimentação do fascismo na esfera escolar. Sinais disso já existem, como sentenças judiciais de primeira instância, recomendando que não haja debates sobre temas políticos nas universidades. Disso para que sejam presos professores que praticarem “assédio ideológico”[3] a distância é quase nula.
3.       Há um claro inconformismo do ESP com o resultado eleitoral de 2014, além de uma ação que busca capitalizar para seus arautos os fundamentalismos religiosos e as afrontas à laicidade do Estado a que assistimos diariamente. Curioso notar que a justificativa do PL referido menciona teses do V Congresso Nacional do Partido dos Trabalhadores como prova de que estaríamos diante de um sistema escolar que praticaria “doutrinação ideológica”. A “descontaminação” pretendida pelo ESP é, isso sim, uma medida análoga ao que se deu na Alemanha, durante os anos em que o nazismo foi se estabelecendo como ideologia oficial e única a ser aceita. Na verdade, existe uma absoluta falta de base empírica para o que a ESP anuncia como seu segundo objetivo, combater a monopolização política e ideológica das escolas. O devaneio seria cômico, se não fosse trágico.
4.       O ESP é uma aberração obscurantista, que desconsidera que as escolas (em quaisquer níveis e redes de ensino, inclusive as públicas) são aparelhos “privados” de hegemonia, ou seja, são espaços institucionais próprios da sociedade civil (ainda que vinculados, regulados e administrados por órgãos do Estado, em sentido estrito) nos quais visões de mundo são elaboradas, difundidas e disputadas. A hegemonia, entendida como direção moral, intelectual e política, é construída, ressignificada, atualizada, superada, substituída, enfim, disputada o tempo todo, por meio de diversos aparelhos (espaços institucionais), sendo o sistema escolar um deles. O patrulhamento ideológico que se expressa pelo ESP é uma afronta à cultura democrática, é um veto ao avanço do conhecimento, é, portanto, um eco dos tempos em que disciplinas como Educação Moral e Cívica, Organização Social e Política do Brasil e Estudos de Problemas Brasileiros estabeleciam o limite entre “a verdade”, de um lado, e “ideologias contaminadoras”, de outro.
Por tudo isso, o ESP deve ser analisado, denunciado e derrotado, jamais negligenciado, pois se trata de um poderoso ovo do fascismo.
Uberlândia, 11 de outubro de 2017.
Prof. Edilson José Graciolli
Cientista Político e Sociólogo da UFU


[1] Extraído de http://www.escolasempartido.org/objetivos, acesso em 20/07/2016.
[2] Cf. matéria em http://emais.estadao.com.br/noticias/gente,nao-existe-genero-o-que-te-define-e-o-que-voce-tem-entre-as-pernas-diz-feliciano-a-felipe-neto,10000061104.
[3] O alegado “assédio ideológico”, pelo Projeto de Lei (PL) 1411/2015, do Deputado Rogério Marinho (PSDB/RN), é tipificado como crime, para o qual se prevê detenção de 3 meses a 1 ano, além de multa, por quem o praticar. Esse PL ainda tramita na Câmara dos Deputados e é citado, explicitamente, pelo ESP, como uma peça legislativa que se alinha com sua perspectiva.

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