Compõem
a cena política brasileira, pelo menos desde meados de 2013, muitos aspectos
por demais importantes para que possam ser deixados de lado, não só porque
estão conectados, articulados, mas igualmente em razão de seu significado a
médio e longo prazos. Este texto aborda um deles, o movimento “escola sem
partido” (deste ponto em diante designado pela sigla ESP).
No
site do ESP, no campo “Objetivos”, encontramos isto como o núcleo de sua
proposta, resumida em 3 objetivos principais:
EscolasemPartido.org foi criado para dar visibilidade a um problema gravíssimo que
atinge a imensa maioria das escolas e universidades brasileiras: a
instrumentalização do ensino para fins políticos, ideológicos e partidários (...).
Lutamos: pela descontaminação e desmonopolização
política e ideológica das escolas (...); pelo respeito à integridade intelectual e moral
dos estudantes (...); pelo
respeito ao direito dos pais de dar aos seus filhos a educação moral que esteja
de acordo com suas próprias convicções (...).[1]
Evidentemente,
o ESP está se referindo, muito mais do que a legendas partidárias, a um
conjunto de temas, concepções, visões de mundo, categorias analíticas, isto é,
a ideologias que ele, ESP, caracteriza como contaminação e monopolização moral,
política e “ideológica” (sentido pejorativo). Convenhamos, esta é a essência do
pensamento fascista.
Mussolini, no
auge do fascismo italiano, afirmava nos comícios em que era o grande chefe que
“os partidos dividem a nação”.
Sócrates, na
Grécia Antiga, tinha sobre seus ombros a acusação de “perverter a juventude”.
Jesus de
Nazaré respondeu à acusação de “subverter o povo”, dado que se sentava à mesa
com publicanos, conversava com samaritanas, prostitutas, entre outras figuras
tidas e havidas pelos líderes políticos e religiosos de seu tempo e lugar como
a escória a ser eliminada, pois contaminariam a sociedade de então.
Nos tempos da
ditadura militar no Brasil (1964-1985), o regime político buscava garantir uma
suposta “neutralidade” pedagógica nas escolas, lançando mão de conteúdos como
Educação Moral e Cívica, Organização Social e Política e Estudos de Problemas
Brasileiros, respectivamente para os níveis de ensino então denominados 2º
ciclo do Primeiro Grau, Segundo Grau e Ensino Superior. Uma única perspectiva
era apresentada como verdade única e inquestionável, naturalizando-se, assim, a
construção do discurso oficial, ou, dito de outra forma, à la E.P.Thompson, promovendo um enquadramento da memória, dado que
nada que estivesse fora do discurso oficial poderia ser considerado científico
ou válido.
Assim é o ESP.
Seus adeptos querem apenas Ludwig Von Mises, nada de Karl Marx. Eles pretendem
expurgar das escolas temas como gênero, diversidade de orientação sexual porque
sustentam que o masculino e o feminino são estabelecidos – desculpe-me o leitor
pela expressão chula, mas a capacidade de síntese de Marcos Feliciano, para o
caso presente, é didática do que representa o ESP – “pelo que cada um traz
entre as pernas”[2].
Sua intenção contempla estabelecer a heterossexualidade como “normal” e a
homossexualidade como “anormal” e imoral, tendo como corolário um modelo único
de família, de pátria, de nação, de certo, de errado etc.
Isto posto,
passo à síntese da análise sobre o significado do movimento ESP.
O título acima
revela, em larga medida, meu posicionamento sobre tal movimento. Ele mesmo é
uma concepção de mundo, uma visão, enfim, uma ideologia em sentido amplo, por
mais que esta caracterização contrarie a autodeclaração do movimento. Por outro
lado, é também uma ideologia em sentido estrito (no caso, como universalização
de uma forma particular de ver as coisas). Senão, vejamos.
1.
O ESP é um movimento que visa eliminar da vida
escolar toda e qualquer concepção articulada com as lutas pela emancipação
humana, da superação das desigualdades socioeconômicas àquelas que buscam
enfrentar as hierarquias entre os gêneros, as manifestações de LGBTfobia e
todas as formas de exploração, intolerância e opressão. O ESP não chega a denominar
quais “partidos” seriam o alvo de sua atuação, mas é evidente que seus
objetivos são o da supressão de todo um campo político e ideológico, o da
esquerda e centro-esquerda.
2.
O ESP é ele mesmo um partido político, no
sentido gramsciano, isto é um movimento de ideias, que busca racionalizar a
vida social, sendo, inclusive, uma ideologia integral (Gramsci), pois visa se
impor como pensamento único, como verdade absoluta, naturalizando relações
históricas e sociais, como se elas não tivessem historicidade, interesses e
lastro em classes, frações de classe e segmentos políticos no interior destas.
Portanto, o ESP, sob certos disfarces, é o processo de pavimentação do fascismo
na esfera escolar. Sinais disso já existem, como sentenças judiciais de primeira
instância, recomendando que não haja debates sobre temas políticos nas
universidades. Disso para que sejam presos professores que praticarem “assédio
ideológico”[3] a
distância é quase nula.
3.
Há um claro inconformismo do ESP com o resultado
eleitoral de 2014, além de uma ação que busca capitalizar para seus arautos os
fundamentalismos religiosos e as afrontas à laicidade do Estado a que
assistimos diariamente. Curioso notar que a justificativa do PL referido
menciona teses do V Congresso Nacional do Partido dos Trabalhadores como prova
de que estaríamos diante de um sistema escolar que praticaria “doutrinação
ideológica”. A “descontaminação” pretendida pelo ESP é, isso sim, uma medida
análoga ao que se deu na Alemanha, durante os anos em que o nazismo foi se estabelecendo
como ideologia oficial e única a ser aceita. Na verdade, existe uma absoluta
falta de base empírica para o que a ESP anuncia como seu segundo objetivo,
combater a monopolização política e ideológica das escolas. O devaneio seria
cômico, se não fosse trágico.
4.
O ESP é uma aberração obscurantista, que
desconsidera que as escolas (em quaisquer níveis e redes de ensino, inclusive
as públicas) são aparelhos “privados” de hegemonia, ou seja, são espaços
institucionais próprios da sociedade civil (ainda que vinculados, regulados e
administrados por órgãos do Estado, em sentido estrito) nos quais visões de
mundo são elaboradas, difundidas e disputadas. A hegemonia, entendida como
direção moral, intelectual e política, é construída, ressignificada, atualizada,
superada, substituída, enfim, disputada o tempo todo, por meio de diversos
aparelhos (espaços institucionais), sendo o sistema escolar um deles. O
patrulhamento ideológico que se expressa pelo ESP é uma afronta à cultura
democrática, é um veto ao avanço do conhecimento, é, portanto, um eco dos
tempos em que disciplinas como Educação Moral e Cívica, Organização Social e
Política do Brasil e Estudos de Problemas Brasileiros estabeleciam o limite
entre “a verdade”, de um lado, e “ideologias contaminadoras”, de outro.
Por tudo isso,
o ESP deve ser analisado, denunciado e derrotado, jamais negligenciado, pois se
trata de um poderoso ovo do fascismo.
Uberlândia, 11
de outubro de 2017.
Prof.
Edilson José Graciolli
Cientista
Político e Sociólogo da UFU
[2]
Cf. matéria em http://emais.estadao.com.br/noticias/gente,nao-existe-genero-o-que-te-define-e-o-que-voce-tem-entre-as-pernas-diz-feliciano-a-felipe-neto,10000061104.
[3] O
alegado “assédio ideológico”, pelo Projeto de Lei (PL) 1411/2015, do Deputado
Rogério Marinho (PSDB/RN), é tipificado como crime, para o qual se prevê
detenção de 3 meses a 1 ano, além de multa, por quem o praticar. Esse PL ainda
tramita na Câmara dos Deputados e é citado, explicitamente, pelo ESP, como uma
peça legislativa que se alinha com sua perspectiva.
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